Um dia de chumbo e sangue narrado por Camilo Castelo Branco
A tropa e os ministros
As 6 horas e 42 minutos ainda mal se entrevia a faixa escura com umas cintilações de espadas nuas, que se avizinhava do cadafalso. Era um esquadrão de dragões. O patear cadente dos cavalos fazia um ruído cavo na terra empapada pela chuva. Atrás do esquadrão seguiam os ministros criminais, a cavalo, uns com as togas, outros de capa e volta, e o corregedor da corte com grande majestade pavorosa. Depois, uma caixa negra que se movia vagarosamente entre dois padres. Era a cadeirinha da marquesa de Távora, Dona Leonor. Alas de tropas ladeavam o préstilo, e à volta do tablado postaram-se os juizes do crime, aconchegando a capa das faces varejadas pelas cordas da chuva. Do lado da barra reboava o mugido das vagas, que rolavam e vinham chofrar espumas no parapeito do cais. Havia uma escada que subia para o patíbulo.
A chegada de Dona Leonor ao cadafalso A marquesa apeou da cadeirinha, dispensando o amparo dos padres. Ajoelhou no primeiro degrau da escada, e confessou-se por um espaço de 50 minutos. Entretanto martelava-se no cadafalso. Aperfeiçoavam-se as aspas, cravavam-se os pregos necessários à segurança dos postes, aparafusavam-se as roscas das rodas. Recebida a absolvição, a padecente subiu entre dois padres, a escada, na sua natural atitude altiva, direita como os olhos fitos no espetáculo dos tormentos.
Trajava cetim escuro, fitas nas madeixas grisalhas, diamantes nas orelhas e num laço dos cabelos, envolta em capa de alvadia roçagante. Assim tinha sido presa, um mês antes. Nunca lhe tinham consentido que mudasse camisa nem lenço do pescoço. Receberam-na três algozes no topo da escada, e mandaram-na fazer um giro no cadafalso para ser bem vista e reconhecida.
A exposição dos tormentos Depois, mostraram-lhe um por um os instrumentos das execuções, explicaram-lhe por miúdo como haviam de morrer seu marido, seus filhos, e o genro. Mostraram-lhe o maço de ferro que devia matar-lhe o esposo à pancadas na arca do peito, as tesouras ou aspas que se lhe haviam de quebrar os ossos das pernas e dos braços de todos os condenados e mostraram-lhe como era que as rodas operavam no garrote, cuja corda lhe mostravam, e o modo como ela repuxava e estrangulava ao desandar do arrocho. A marquesa então sucumbiu, chorou muito ansiada, e pediu que a matassem depressa.
A decapitação
O algoz tirou-lhe a capa, e mandou-a sentar num banco de pinho, no centro do cadafalso, sobre a capa que dobrou devagar, horrendamente devagar. Ela sentou-se. Tinha as mãos amarradas, e não podia ajustar o vestido que caíra mal. Ergueu-se, e com um movimento do pé consertou a orla da saia. O algoz vendou-a; e ao pôr-lhe a mão no lenço que lhe cobria o pescoço – não me descomponhas – disse ela, e inclinou a cabeça que lhe foi decepada pela nuca, de um só golpe.
O verdadeiro verdugo Este processo de carniçaria, naquela manhã de nevoeiro, debaixo de um céu de chumbo, impassível como a lâmina que degolou Leonor de Távora, há-de sempre lembrar com horror e piedade. Porém, que nome execrado, que verdugo responsável escreveremos na página da História? Sebastião José ( o marquês do Pombal), esse não tinha nada que ver com os adultérios de seu real amo e senhor. Mas agora, que temos ai à porta o centenário do marquês do Pombal, vem de molde a recordar alguns episódios daquele tempo.”
Camilo Castelo Branco – Perfil do Marquês do Pombal, 1882
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