Filme de Luis Buñuel é um marco do surrealismo no cinema.
Um Cão Andaluz é uma curta-metragem que está profundamente enraizado nas bases de um movimento artístico que engloba formas mais diversas do que somente o cinema.
Categorizado como um filme da vanguarda do surrealismo, sua linha narrativa difere-se abruptamente da linearidade e das convenções do cinema clássico-narrativo, opondo-se a uma lógica aristotélica de narrar histórias, estando muito mais alinhado a teorias nascentes de inconsciente e a linguagem do fluxo de consciência. Realizado em 1929, as ações imitam de maneira persistente o fluxo desconexo dos sonho, o que ocasiona um detrimento do princípio da continuidade espaço-temporal. Desse modo, trabalha com uma narrativa que, ao invés de emular a realidade, tem como mote associações livres para imitar o processo do sonho.
Entretanto, Buñuel utiliza elementos da linguagem cinematográfica clássica-narrativa, tais como planos próximos e closes dramáticos, mas com um intuito essencialmente oposto: o de retratar a realidade interior dos personagens. Portanto, Un Chien Andalou é um descendente artístico direto dos estudos de Sigmund Freud, como na sua obra literária A Interpretação dos Sonhos, que causaria grande impacto nas artes em geral, tanto na literatura, como demonstraria James Joyce em seus fluxos de consciência narrativos, que mais tarde influenciaria William Falkner, quanto nas artes plásticas, sobretudo no surrealismo.
O que há em comum nessas manifestações pós-freudianas é que elas promovem uma quebra de convenções na forma como a arte é apresentada, no sentido de que quebram com as regras protocolares e a lógica da arte até então. E não seria diferente no cinema, como bem exemplificado na narrativa caótica de Um Cão Andaluz, por vezes interpretado erroneamente inclusive como uma obra nonsense. Na verdade esta suposta anarquia narrativa do filme, assim como de outras obras do surrealismo, emerge de uma manifestação contra a elite e o equilíbrio burguês.
Nesta produção, há uma imagem emblemática que marca o início da narrativa, e é a mais lembrada do filme e de todo o surrealismo cinematográfico: a cena de uma navalha cortando o globo ocular de uma mulher. Ainda é muito discutido o que esta imagem quer transmitir em significado. Para muitos é apontada como uma tática de choque, símbolo de uma visão modernista e até mesmo um estandarte da agressividade masculina. Outros apontam como um símbolo que mostra um anúncio de uma nova visão da realidade. O fato é que a imagem, assim como todo o filme, possui um caráter onírico que se distancia de forma contundente de um retrato direto da realidade, dando forma a um universo regido pelo onírico – que naturalmente dará margens a diversas interpretações.
O próprio surrealismo baseia seus princípios na crença de que existe uma realidade superior a esta trivial a qual concebemos como uma verdadeira e única "realidade". Neste conceito de realidade dos surrealistas, somente se chega a verdade por meio de associações de conceitos (símbolos visuais e sonoros) aparentemente desconexos. Os chamados processos oníricos, tomando como base a suposta decifração de significados emblemáticos que se elaboram nos sonhos. Dentre as demais vanguardas dos anos 20, que também tiveram manifestações no cinema, tais como o Dadaísmo, o Cubismo e o Futurismo, justamente o Surrealismo é o que de modo mais enfático destina-se ao trabalho de romper com estigmas e valores sociais deturpados e pré-definidos, libertando o homem de uma existência degradada pela lógica burguesa, por pressupostos da igreja e pela tirania de governos opressores.
Portanto o cinema surrealista, na figura de Um Cão Andaluz, representava uma tentativa artística de transformar a expressividade num instrumento em prol da "linguagem", esta como elemento essencial de uma obra. A ideia presente no filme era, mais do que um rompimento com a realidade, fundamentalmente uma ruptura com um modo de retratar a realidade. Desse modo, a obra é repleta de símbolos aparentemente desconexos (cobras, bicicletas, coisas voadoras, formigas), gerando uma narrativa que rompe com a tradição burguesa, chocando a estabilidade do mundo. Mas, em contrapartida, no intuito de que, como cada signo tem seu significado atribuído de forma subjetiva, desenvolva-se uma narrativa que faça sentido para o inconsciente do espectador, fomentando sensações originadas em sua memória involuntária. A realidade que interessa aos surrealistas.
Juliano Mion
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